Caros conterrâneos, volto de novo à V.ª janela virtual. Àquela que me acolhe a cada vez que me pronuncio, mandando algumas palavras para a nossa aldeia global, o Cebola.net. 

Há uns dias que ando para falar “ligeiramente” da vida e da morte. Verdade se diga que nem a energia nem o dinamismo me levam directamente ao assunto sem que a dor me assalte o coração e me faça recuar os dedos do computador. Há um grande número de pessoas acreditando que a morte é o fim de todas as coisas terrenas. No entanto, a maioria escreve que a morte pode não ser o fim. Talvez esses vivam embebidos numa crença religiosa mais determinada que os leve a pensar de forma a sentirem uma Fé diferente. Há, de facto muitos mitos e crenças à cerca da morte. Também coabitamos, dia após dia, com os que acreditam no inferno, e outros afirmam ainda que os de boa conduta, quando morrem, vão direitinhos ao Céu. Uma certeza existe para todos nós, é que nascemos para morrer.

Talvez me sinta agora mais preparada para vos falar de um Homem que muito admiro, o Sr. Jorge da Eira, personagem que marcou muito positivamente a minha infância.

Agora pergunto: serei mesmo crente? Que me perdoem os religiosos. Porque nos deixou o nosso Grande Amigo, o Sr. Jorge de Almeida Baptista? Apesar do que acima deixei escrito (negro sobre branco) não consigo entender a morte. A morte não tem razão de ser... a morte não devia existir. Chego a perguntar-me porque nascemos se temos que transpor o portal da morte.      

Hoje peço paciência aos meus leitores. Ao escrever com este tipo de linguagem sentimental e cinzenta pretendo apenas esvaziar a minha alma de menina, considerada, de certo modo, cândida em quaisquer sentimentos e momentos de reflexão. Quanto às palavras são sinceras, sejam elas alegres ou transgridam na tristeza ou na dor.    

Quero falar das gentes da minha Terra, de Cebola, onde trago espalhadas as minhas raízes. Aí onde alguém plantou essas raízes, por mim, com todo o amor do mundo; ali onde há outras raízes, a que eu chamo pedaços de ouro que guardo no meu coração. Viva no fim do mundo, aconteça o que acontecer, a minha infância marca definitivamente a minha personalidade e a minha vivência em quaisquer das minhas actividades ou atitudes. 

Gosto imenso de relembrar, uma por uma, as pessoas de mais Idade, as carícias e a atenção dispensadas naqueles anos da minha criancice. Apenas trago uma mágoa no peito por não lhes ter dado mais um abraço terno e amigo, por não lhes ter mostrado o que representaram e representam para mim. Todavia, já me veio igualmente à ideia redigir um texto sobre a exploração de menores, (o Portugal desses tempos) sem esquecer a malvadez de alguns casais mais abastados que, por meia dúzia de bolachas, faziam trabalhar as crianças do nascer do Sol até fazer lusco-fusco. Um dia virei “à baila” de outra maneira.

Passo então a contar-lhes uma história verdadeira cheia de ternura e de saudade. É este o carinho e a amizade que sinto pelo Sr. Jorge, pela D. Maria do Carmo e sua filha Sãozinha – sentimentos positivos que ainda perduram apesar dos anos alargados e da distância! Eu tinha dois palmos e meio de menina quando aprendi a amar aquela gente boa. Na altura a minha tia Piedade Antónia lavava a roupa dessa simpática família. Assim sendo, pela mão da velha tia, entrava eu, menina, pela casa adentro do casal Almeida Baptista, e da Menina Teresinha.

Lembro-me ter recebido roupinhas da Sãozinha. Ah, como ficava engraçada e vaidosa quando me via ao espelho ainda em casa dos Baptista. E quantas vezes me convidaram a lanchar com a princesinha da casa que tinha a minha idade, creio eu. Terminado o repasto saltava a brincadeira e, logo depois, vinham os recados sábios do paizinho Jorge. Ainda hoje bordam a ouro, o meu de livro de notas, alguns dos ricos conselhos que me deu o Sr. Jorge da Eira.

Naquela casa havia pão para todos, educação e carinho ministrados de maneira selecta e requintada. Se bem me lembro das minhas brincadeiras de criança, eu e a Sãozinha fazíamos barulho como todos os meninos da nossa idade, mas naquela casa nunca me nos levantaram a voz, a cada vez que se encomendava o silêncio aos mais novos.

Como alguns dos meus conterrâneos sabem, o meu pai foi para Angola eu tinha 2 anos. O pai Ramitos voltou 9 anos depois. Naqueles tempos a vida era difícil e muitas das famílias numerosos se viram divididas para que o aconchego familiar fosse melhor e mais farto. Nada tenho a dizer do meu querido pai. Quando conheci o patriarca já  tinha 11 anos completos, mas o amor pelo meu pai foi único e muito bem retribuído. O meu paizinho adorava o meu marido e a nossa filha. Já Deus o tem noutra eira há muitos anos, infelizmente...

Às vezes sentava-me ao colo do meu irmão mais velho que me dava carinho como se fosse um verdadeiro pai. Quer queira, quer não, ele hoje nem se dá conta como valiosas são para mim estas lembranças. Pois, mas agradeço de igual modo o amor e a ternura que me deu. Foi um irmão muito amoroso e disciplinado. Começou a trabalhar com 14 anos de idade. Ele sabia que com o pai ausente teria que ajudar a sustentar os seus 5 irmãos mais novos. Aí reside o seu valor como varão mais velho da família.

Hoje tenho a sensação que as recordações são eternas. Um dia, talvez tivesse sete ou oito anos, ao dar-me conta que também gostava de ter um pai ao meu lado, fui à loja da Eira, como era hábito, saudar o Sr. Jorge, o amigo das crianças. Sentia-me bem e segura ao conversar com aquele bom pai da minha amiga Sãozinha. Ele tinha uma paciência de Job. Nesse dia fiz-lhe mil uma perguntas a propósito da mercadoria que tinha recebido,  logo respondeu com ar de sábio professor.

De seguida observei-o por alguns minutos e perguntei:  “Sr. Jorge da Eira quer ser meu pai”? Disse-lhe que um pai é como uma estrela: “Eu não tenho nenhuma para me guiar pela mão”. Ele muito delicadamente sentou-me num banco de madeira, de maneira a que eu visse o céu. Esse fim de tarde estava brilhante e claro no horizonte. Vi-lhe limpar as lágrimas no rosto, bem me lembro. Mas a resposta não tardou a deixar-me curiosa: “ Filhinha vais contemplar o céu e fazer de conta que vês lá três estrelas. Olha para elas muito bem e não deixes que nenhuma se perca, se alguma se perder é grave.” Muito intrigada perguntei-lhe a razão daquela conversa. Ele respondeu delicadamente: “ Faz de conta que o céu azul é Angola e tu estás lá com o teu pai e a tua mãe. São três não te esqueças, cada uma das estrelas representa uma pessoa. Se chegar a lua e pedir ao céu uma estrela e a levar, as outras duas ficam tristes, mais pobres, sozinhas, não é assim Adlaidita. Agora imagina, qualquer dia chega aí o teu pai, a tua mãe tem 6 filhos e entrega ao homem dela apenas 5, o que dirá o ti Joaquim Ramos se lhe faltar uma das suas estrelinhas”.

Mas o Sr. Jorge da Eira não se esqueceu de acrescentar à conversa: “Teria imenso gosto em ser teu pai, caso fosse possível, mas serás sempre uma menina estimada e amada no seio da nossa família”.

E palavras ditas, palavras marcadas no peito. O amor nunca se esquece. O bom conselho é semelhante ao calor da fogueira que não arrefece logo que saibamos ateá-la para nos valermos quando o inverno da vida nos apoquentar. Entendi a mensagem do Sr. Jorge e fui feliz para casa. Dias depois chegou o pai. O único senão é que os meus irmãos foram para Angola e eu fiquei por mais uns tempos.

Passei a minha adolescência em Angola. Casei e três anos depois rebentou a guerra colonial. Regressei a S. Jorge e fui viver dois anos e meio para as Minas da Panasqueira. Um dia ao passar por Silvares deparamo-nos com um acidente e uma grande fila de carros. Assim, preocupada, saí do automóvel e o meu marido seguiu-me. Tentei saber o quê se passava. De imediato vejo correr, en direcção a nós,  um senhor muito bem posto que nos enlaçou aos dois com o seu forte, bonito e recordado abraço. Voltamos a ver o Sr. Jorge Baptista na Loja da Eira e lá compramos algumas coisas de utilidade para a casa.    

Passaram-se vários anos e, como a vida é madrasta, (sei la, talvez seja o país dos lusitanitos... padrasto),  voltamo-nos a perder de vista.  De repente, num alegre mês de Julho, recebo uma chamada de Portugal que me deixou imensamente feliz. Logo me dei conta que era a voz da inconfundível da Sra. D. Maria do Carmo que de seguida passou o telefone ao marido, ao Sr. Jorge da Eira. O casalinho Jorge e Maria do Carmo Baptista tinham-me visto na Praça da Alegria por altura de alguns lançamentos dos meus livros. Tiveram a gentileza de chamar para Montreal para me darem os parabéns. Senti neles um grande orgulho. Verdade seja dita, não escondo a alegria que senti naquele dia, e nos que se seguiram, até hoje.

Quantas vezes a família em Portugal nem sequer se apresenta, para me dar um abraço, nos momentos em que faço apresentações ligadas às artes e às letras. Naturalmente, o gesto desta família ficou gravado no meu peito para sempre. Depois deste brilhante episódio falei mais algumas vezes com o Sr. Jorge e com a sua esposa, e prometi passar por Oliveira do Hospital para lhes fazer uma visita. Falhei à promessa e agora sinto remorsos. Sei que o casal esperou por mim alguns verões. Infelizmente levo sempre a agenda carregada quando me desloco a Portugal, essa foi a razão do incumprimento da palavra. Espero poder abraçar a Sr. D. Maria Carmo e a Sãozinha quando regressar às terras de Camões e de Pessoa.


Neste momento, o que lhes peço é que aceitem as minhas sentidas condolências, D. Maria do Carmo, Sãozinha, mulheres amadas do Sr. Jorge de Almeida Baptista. Nunca os esquecerei, acreditem. Os meus sentimentos a toda a numerosa família Baptista.

Um beijo terno da Adelaide   

Para os amigos da aldeia Cebola pelo mundo,

aqui fica o abraço de sempre, até breve.