"Do rio que tudo arrasta, se diz que é violento. Mas ninguém chama violentas as margens que o comprimem.”
Bertolt Brecht
A minha infância e início da adolescência foram ainda vividos durante a ditadura fascista, conhecida pelo Estado Novo. Primeiro com o famoso António Oliveira de Santa Comba Dão e depois com o menos famoso Marcelo, do qual se esperava uma primavera que nunca chegou a acontecer.
Eram tempos sinistros e tristes…tenebrosos. O povo Português vivia uma opressão sem paralelo que provocava um generalizado síndroma de medo, além de uma pobreza extrema. Tínhamos medo de tudo; Do Padre do Regedor do Professor do Rico do Influente da GNR da PIDE e até do vizinho com receio que fosse Bufo. Por isso a submissão era a atitude mais comum.
Como todas as ditaduras, também o Estado Novo tinha a sua doutrina ideológica. Eram várias as formas de a propagar. Uma delas, talvez a mais frutuosa, era através dos currículos escolares sobretudo os do ensino básico, a primária, sendo os professores conscientes ou não, o veículo de transmissão.
Nestas condições entrei eu para a escola em 1965. O método de ensino era violento, física e psicologicamente. A linguagem agressiva e batiam, espancavam mesmo, com uma frequência assustadora. Constante. Assistir a cenas destas, onde os alunos eram sovados com varas nas pernas, reguadas nas mãos, dar-lhes com a cabeça contra o quadro, ou puxar-lhes as orelhas de tal forma que rasgavam atrás e surgiam feridas, criava em mim uma fúria enorme, não só contra os professores, mas também contra os colegas que não se revoltavam e tudo consentiam. Apesar de menino pressentia que os professores batiam por capricho ou frustração apenas. Em linguagem de criança seria: Batiam porque lhes apetecia, porque os deixava satisfeitos.
Não havia horários, tudo dependia da disposição e vontade dos mestres. Era frequente três horas seguidas sem qualquer intervalo. E num desses dias tive uma vontade enorme de urinar.
“ Minha senhora, posso ir lá fora? Não! “
O meu pedido deve ter-se repetido, sem exagero, umas trinta vezes, e a resposta da professora também. Mesmo que quisesse não aguentava mais, tive que fazer nas calcas. Das calcas passou para a carteira, da carteira para o chão, e foi correndo por este em direção á secretária da dita. Era já um pequeno rio nessa altura, quando a SENHORA se deu conta. Sentindo-se culpada, mudou radicalmente a sua posição e permitiu que eu fosse lá fora. Estive imenso tempo ainda a mijar, parecia que me ia desfazer em urina. Onde tinha eu espaço para armazenar tanto líquido?
Estórias como estas ou mais torturosas ainda iriam repetir-se ao longo dos anos, fazendo de mim um miúdo rebelde. Vou contar apenas algumas das mais marcantes.
O mês de Maio conhecido também por mês de Maria, era para nós terrível. A nossa muito beata professora, obrigava-nos na hora do Almoço – entre as 12 e as 13.30 – ir á capela e rezar o terço, e depois voltar para a escola. Éramos a única classe a ter de fazer esta peregrinação.
Não, isso é que não! O tempo do almoço é nosso!!
Organizei a classe e em vez de irmos para a capela, seguimos estrada fora e fomos á fonte dos castanheiros e às 13.30 apresentamo-nos na escola. Para surpresa nossa, ninguém falou do sucedido, a Prof. não fez quaisquer perguntas ou censuras e a peregrinação não teve de voltar a realizar-se. Afinal vale a pena a gente se opor, pensava eu em segredo apesar da minha tenra idade.
Normalmente antes no fim do ano lectivo havia uma excursão, quase sempre com o mesmo percurso. Visitava-se o mosteiro da Batalha, de Alcobaça e terminava-se na inevitável Fátima com aquelas histórias dos Pastorinhos e da N. Senhora na Cova da Iria mais isto, mais aquilo. Na Batalha e em Alcobaça levávamos injecções de patriotismo. Era-nos explicado que um certo Afonso de Paiva, conseguiu aquilo que renomados arquitetos Ingleses não conseguiram; fez com que uma determinada abóbada por si construída não caísse, como já havia acontecido várias vezes aos famosos Britânicos e até outros de outras nacionalidades. Este facto tornara-o herói nacional. Mas acho que a sorte não estava do seu lado, acabou por morrer, por ficar apenas três dias sem comer debaixo da dita abóbada. Ou tinha outra doença ou a estória estava mal contada.
O mosteiro da Batalha deve-se sobretudo á batalha de Aljubarrota, onde um certo Nuno Álvares Pereira, estratega em artes bélicas, conseguiu levar de vencida os Castelhanos que eram quatro vezes mais. Este personagem é hoje Santo. Isto fazia-me confusão terrível. Como é que um guerreiro que mata tanta gente pode ao mesmo tempo ser santo? Uma pergunta lógica, cuja resposta ninguém tinha e se me afigurava como o mistério da Santíssima Trindade. Um dogma! Mais um!
E foi numa dessas viagens ao Portugal guerreiro e orgulhoso , que aconteceu algo que nao devia .
Estávamos em meados de Junho de 1968, penso eu, ainda não tinha completado nove anos. Naqueles tempos as estacões do ano respeitavam o calendário (talvez também com medo do solteirão de Santa Comba) e em Junho havia já muito Sol e temperaturas altas. Iamos a meio da manha e parámos algures, já nao sei onde, para visitar um monumento. Esse monumento tinha no seu interior, um átrio com um belo jardim e uma fonte escultural no meio com várias bicas. Curvei-me para beber, mas nesse momento uma mão poderosa e uma voz estridente impediram-me; “ Não vais beber, vais fazer um sacrifício “. Era evidente que esta figura havia agido premeditadamente, sabe-se lá quanto tempo levou a preparar esta tortura! Um sacrifício, pensava eu…mas porquê? Que é um sacrifício? E porquê eu? Porque não o fazes tu se gosta assim tanto? É evidente que tais perguntas as fizeram em silêncio. Embora eu já tivesse ouvido milhares de vezes a palavra sacrifício, o seu significado era para mim difuso, não conseguia associar este vocábulo a qualquer acto lógico ou racional. Bem… mas parece que eu não tinha escolha, a figura tinha decidido, e eu era um pequeno instrumento na sua mão. Assim sendo andou todo o dia como uma sombra atrás de mim e não me deixou beber nem uma gota que fosse. Para onde quer que eu virasse, a minha sombra acompanhava-me. Os gastos de energia de uma criança são elevadíssimos e o calor que fazia naquele dia era imenso, eu iria ter de certeza, um problema de desidratação, mas isso não interessava à Professora, a sua tendência para a tortura era mais forte que tudo o que pudesse ser sensatez. Não sei se era em nome da religião ou de alguma frustração ou ainda qualquer outra razão que ela agia assim, fosse como fosse isso era sempre condenável.
Andava desesperado, triste, sem forcas, murcho, era ainda muito criança para me revoltar. Com o decorrer do dia a sede acentuou-se de tal maneira, que até já tinha miragens, ou seria a minha imaginação apenas. Imaginava-me a beber quando via alguma fonte ou curso de água, independentemente do seu estado. Mesmo que estivesse barrenta, suja, bebia bebia bebia… pensava eu só pra mim. Só pude beber quando cheguei a S. Jorge, eram já 23 h ou mais. Estive cerca de 24 horas sem beber qualquer líquido.
A brincadeira podia ter corrido mal, para mim claro e para a dos sacrifícios. Por sorte, apesar de pequeno eu era robusto, e para além das miragens e da enorme sede, nao aconteceu mais nada mas podia muito bem ter acontecido.
Entretanto cheguei á quarta classe. Este ano foi tumultuoso, foram introduzidas mais duas classes no ensino obrigatório, e tive quatro professoras. Duas delas eram jovens e de fora, duma outra geração, não eram beatas nem batiam, pelo contrário, eram compreensivas e meigas, tratavam-nos muito bem. Pela primeira vez eu sentia prazer em ir á escola.
Sol de pouca dura!
Feito o exame da quarta, entro na quinta e reencontro a minha velha amiga. Tinha quase 11 anos, era já um mocito muito rebelde o que enfurecia ainda mais a minha sempre enfurecida amiga. Sacava a palmatória da gaveta. Mesmo que me propusesse e fi-lo uma vez, mas quando esta vinha no ar retirei a mão e a professora acertou no próprio joelho, não conseguia dar a mão ao pedaço de madeira. Punha a mão esquerda em cima da palma da mão da direita, a professora tinha medo de bater porque me iria partir as falanges. Mandava que os colegas mais fortes me segurassem, uns nas pernas e outros nos braços. Os músculos das pernas são suficientemente fortes para com as flexões criar instabilidade, além disso ela segurava a minha mão direita com a sua, para que se mantivesse aberta, por isso não podia bater com a forca desejada senão acertava em si própria. O exercício terminava sem que a minha mestra conseguisse os seus objetivos Era um espetáculo digno de registo, com grande aparato e tensão. Isto dava-me uma fama que ia além da minha sala de aulas. Manipulada claro, eu era o autor dizia-se, quando na verdade eu era a vítima.
Frustrada por não conseguir seus intentos, sua alteza, pôs-me na última carteira, reservada aos menos inteligentes, aqueles que não iriam passar de ano. E assim foi.
Nesse ano tinham sido inauguradas as escolas novas, eram 6 salas em socalco, 3 em cima 3 em baixo, em arquitectura típica do Estado Novo (*).
Um dia no intervalo, aproximei-me da grade numa das extremidades do recreio, no lado oposto ao dos edifícios, e cuspi para baixo. A parede é alta e inclinada e a saliva não chegou ao pátio. Mas uma das professoras que presenciou a cena - talvez até me estivesse a seguir, quem sabe? - Ficou subitamente histérica e vem ao meu encontro com uma agressividade descomunal e pregou-me uma violenta bofetada. Não só me bateu como pregava a sete ventos, que eu era o diabo, era o diabo em figura de gente, ninguém se emparava comigo, toda a gente estava farta de mim dizia!!! Cuspiu no meu recreio!!! No seu recreio pensava eu? Isto agora é dela? Desde quando?
Volvidas 45 anos, cuspir no chão é ainda um desporto favorito dos portugueses, e esta dama imputava a uma criança inocente uma responsabilidade adulta por um facto absolutamente natural, que ela mesma devia fazer várias vezes ao dia. Procedia como se eu tivesse cometido um crime hediondo. Onde estávamos nós?
Os professores são, não só formadores, como também educadores. Espera-se destes tolerância, compreensão, diálogo, paciência etc. Estes eram exactamente o contrário, agressivos, intolerantes, exagerados, insensíveis, maus mesmo, muito maus. Donde vinham e quem produzia semelhantes criaturas? Seria o regime?
Bem… o regime não justificaria tudo, era no entanto muito violento. Vou deixar algumas frases ou citados que atestam essa violência. A primeira chegou inclusivamente a estar afixada em edifícios públicos, centros de saúde, e rezava assim;
“ O vinho alimenta um milhão de portugueses “
Havia nestes tempos a ideia de que quem não bebesse não era homem. Para se ser homem era necessário beber e quanto mais e mais cedo melhor. Inclusivamente às crianças não só era tolerado como era encorajado beber (**). Tal postura contribuía também para uma sociedade mais marxista ainda. Esta forma de pensar deixou marcas imensas em grandes franjas da sociedade Portuguesa, sobretudo na sociedade rural. Um alcoolismo alargado, mísero e bruto.
A seguinte era talvez a pedra mestra da ideologia fascista do Salazar;
“ Manter o Povo na ignorância é mais fácil de governar “
Sobre esta famosa frase já muito foi dito. É responsável pelo nosso crónico atraso. O analfabetismo alastrou sem precedentes deixando marcas profundas e irreparáveis. Isto era de uma violência intelectual enorme e de uma estupidez primária.
Na última, chamo a atenção para a sequência, onde a família aparece em último lugar.
“ Deus, Pátria e Família “
Só numa pessoa como o António que nunca conheceu uma mulher além da sua governanta, sem família, poderá eventualmente, esta ordem ser compreensível. Este Salazar era um Vilão, um Parolo, que passavas as férias em chinelos no quintal da sua casa em S. Comba. Raramente viajava e as suas saídas eram par ir à Missa. Nas várias décadas em que governou Portugal, deixou um País á sua imagem: Triste, tímido e desconfiado. Um País que tarda em se encontrar.
Mas não perdendo o fia á meada…
Fiquei repetente na quinta classe. Os meus Pais que entretanto tinham emigrado para a Alemanha não gostaram, e puseram-me no ensino particular, podiam agora permitir-se esse pequeno luxo. Entrei no Ciclo Preparatório. Preparava-nos para o Liceu.
Ironia do destino, fui encontrar a Professora histérica que me tinha dado aquela violenta bofetada. Acolheu-me amavelmente, recebia dinheiro vivo das mãos dos meus Pais, agora eu já não era o diabo, mas sim uma criança normal. Já não era sem tempo! Os dois anos com ela decorreram sem qualquer problema ou incidente, o que prova que “ causa e efeito “ são indissociáveis.
Depois do Ciclo, os meus Pais decidiram levar-me para a Alemanha. O país continuava em ditadura e a Guerra Colonial estava no auge. Rapazes eram futuros soldados. Tinham que defender o “ Império “ do amigo do Cerejeira. Sair do País era uma dificuldade enorme. Consegui em Castelo Branco um passaporte por 15 dias apenas, com alguém de fiador. Se eu não me apresentasse pessoalmente nesse prazo este era preso. Isto só foi possível com suborno. O fiador era o entendido nestas matérias, cobrou 10 mil escudos, como ou se os distribuiu é para mim desconhecido. Aliás, subornar, era prática corrente, até para trabalhar havia que subornar.
O sistema tinha buracos, claro.
Viajei para a Alemanha na carrinha do José Correia do Tortosendo, não dormi em toda a viagem, era como uma esponja absorvendo tudo a minha volta. Em S. Sebastiao a “ Guardia Civil “ revistou-nos ao pormenor, revirou tudo de patas ao ar. Um Etarra tinha-se escapado da prisão. Para além do grande aparato policial a cena não me dizia nada, só mais tarde eu iria entender e solidarizar-me com a luta Basca.
Apesar de chover quando cheguei á Alemanha, aquele País impressionou-me imenso, tinha outro cheiro, era muito limpo e ordenado, não triste e deprimente como o nosso Portugal. Mais tarde este viria a ser o meu País de adopção.
Aqui consegui um passaporte de emigrante no Consulado. Voltei a Portugal com o Zé Correia e entreguei o velho, para alívio do fiador. Voltei a não dormir nessa viagem de retorno. O Zé queria-me sempre ao seu lado, dizia que assim se mantinha também acordado.
E volto de novo para Alemanha, de comboio desta vez, à guarda do Sr. António Bernardino. O comboio era meio de transporte mais utilizado nestes tempos, as infra-estruturas rodoviárias não eram as de hoje e o avião era impagável. Fizemos vários transbordos. Mas foi nos túneis da Gare do Norte em Paris, que tive uma percepção da verdadeira dimensão da cena. Éramos centenas e centenas de Portugueses com as nossas malas de cartão e bolsas de tecido, os nossos rostos subnutridos e melancólicos. Mais do que emigrantes, nós éramos refugiados. Refugiados económicos. Fugíamos de um País miserável e devastado. Devastado por uma ideologia sem lógica e uma teimosia inexplicável. Um País cada vez mais isolado. Procurávamos um futuro melhor. Estas imagens, apesar da distância, continuam muito vivas no meu arquivo emocional.
Fiquei um ano na Alemanha, os meus queridos Tios convenceram os meus Pais que eu tinha atributos suficientes para ser estudante e aterrei em Tomar no Colégio Nun´Alvares, meu velho conhecido das excursões escolares. Aí concluí o Curso Geral dos Liceus.
Quando estava no quarto ano do Liceu aconteceu a revolução. Foi como se tivesse rebentado um dique de uma barragem repleta.
A partir daí comecei a tomar consciência do País anterior, do País onde tanto já tinha sofrido apesar de ter apenas 14 anos. E quanto mais me informava, mais fletia á esquerda.
Foi bom o 25 de Abril, apesar de hoje vivermos novamente muito muito mal. Para mim pessoalmente penso que foi imprescindível, rebelde como era e sou iria de certeza entrar em conflito com o regime e suas autoridades.
(*) - Todos ou quase todos os regimes autoritários criam o seu próprio estilo arquitetónico.
(**) - Na festa de S. Sebastião – Bodo – as crianças podiam beber pequenos copos de vinho, com o consentimento e tolerância dos adultos.
- Malhar o milho era tarefa da canalha, com uns fogueiros, para ficar mais fácil de debulhar. As pessoas recrutavam entre 4 a 6 crianças e durante a tarefa davam-nos de beber anis ou jeropiga, bebidas fortemente alcoolizadas, esta última feita á base de aguardente, vinho e acucar. Esta prática era aceita por toda a aldeia sem qualquer relutância. Quando acabávamos de malhar estávamos todos bêbados
- Era também frequente os rapazes adultos darem pequenos golos de cerveja as crianças, a qual dizíamos saber a giesta.
Ps: Devo dizer que não guardo qualquer rancor aos professores da minha infância, aliás tenho-lhes respeito e sou seu amigo. As estórias aconteceram assim, têm que ser contadas como tal. Provavelmente eles sofriam pressões para agirem deste modo. “ De pequeno se torce o pepino “ reza o ditado!